O historiador paraibano José Joffili deu-se ao trabalho de catalogar o número de historiadores que se posicionaram sobre o assunto. Segundo sua acurada pesquisa, dezoito historiadores absolvem Prestes, enquanto onze absolvem o Padre Aristides Foge ao espírito de nossa tese averiguar a quem coube o papel de herói ou vilão neste episódio, se Prestes ou o Padre Aristides. O que nos interessa é fazer uma correta avaliação deste ataque à cidade de Piancó e quais as implicações deste fato perante a sociedade sertaneja. Queremos, também, deixar de lado a opinião de alguns autores que transformaram Prestes num ser mitológico, por entendermos que esse enfoque desloca o sujeito real e concreto da realidade social, com todas suas implicações econômicas, políticas e sociais. Como exemplo de autores que exageram na descrição dos feitos de Prestes durante a marcha da Coluna, destacamos dois: Jorge Amado e Abguar Matos. Jorge Amado, no seu livro o Cavaleiro da Esperança, ao narrar as ações táticas de Prestes durante a operação que culminou no rompimento de um gigantesco cerco efetuado pelas forças legalistas. Esta ação militar foi realizada na Fazenda Buenos Aires, quase que imediatamente depois do combate travado na Fazenda Cipó, em território pernambucano. Nesse episódio militar, no qual quinze mil soldados, os chamados “patriotas”, estavam montando um cerco total contra a Coluna comandada por Prestes, este consegue romper o cerco, escapando de um aniquilamento previsível. Jorge Amado assim descreve o papel desempenhado por seu herói mitológico: “Voltar era impossível: os quinze mil governistas cercavam a fazenda de onde eles haviam vindo. Por detrás a Serra Negra e nela a morte. Na caatinga de atoleiros e espinhos, o medo morava. Os soldados olhavam o céu escuro, nenhuma estrela para guiá-los. Gritos de rãs assassinadas, pios agureiros das corujas. Nenhuma estrela, os homens perdidos na lama. Olhavam para frente. Existia uma estrela, amiga. Olhavam para ela, o chefe que marchava rasgando os caminhos, luz, Carlos Prestes andando na lama. Uma estrela”. Abguar Matos, por seu lado, citando Isidoro, assim se refere à Coluna: “A Coluna excedeu minha expectativa. Eu a denomino Coluna Fênix, porque o pássaro da lenda, ela tem renascido das próprias cinzas. Ninguém pode lhe exigir mais, porque o seu esforço ultrapassou todas as possibilidades humanas”. Deixando de lado as opiniões de Jorge Amado e Abguar Matos, como modelos acabados de estereótipos, que mais obscurecem do que esclarecem o fato histórico, passamos a analisar objetivamente a seguinte questão: o que representou para os habitantes de Piancó, em particular, e para o povo sertanejo, em geral, o ataque e trucidamento do Padre Aristides e dos seus companheiros por parte dos revoltosos, comandados, nesta ação, por Cordeiro de Farias. Os habitantes dos sertões nordestinos, ao início deste século e nas décadas seguintes, mantinham-se num alheamento quase absoluto em relação aos habitantes das outras regiões do Brasil. Uma região, como o nordeste brasileiro, na época em que se deram os acontecimentos aqui relatados - a passagem da Coluna Prestes pelos sertões nordestinos - apresentava-se diante dos revoltosos - soldados e oficiais - como sendo um mundo estranho e bárbaro. Diante de uma realidade totalmente diversa da que faziam parte os membros da Coluna, o choque cultural e político foi muito forte. Segundo a historiadora Anita Leocádia Prestes, “a Coluna falava outro idioma, tinha outra ideologia, seus objetivos eram outros”. Em suma, eram dois muito diferentes, diametralmente opostos, sem possibilidade de diálogo.
Leoncio Basbaum, no seu livro História Sincera da República, ao analisar a Coluna Prestes, teve a oportunidade de enumerar uma série de erros, que tinham sido cometidos, na sua opinião:
“1. Ausência de um mínimo de unidade ideológica.
2. Ausência de objetivos políticos concretos e de um programa mínimo.
3. A não ocupação das cidades, que, ao contrário, eram evitadas.
4. Ausência de um mínimo de contato com o povo dos sertões , que fugia da Coluna quando a Coluna não fugia dele”.
Em outras palavras Prestes e os demais dirigentes da Coluna pautaram suas ações baseados numa elevada dose de subjetivismo e voluntarismo. Além disso, segundo Anita Leocádia Prestes, os tenentes que comandavam a Coluna em nenhum momento “pretenderam mobilizar as massas do campo para a luta, organizá-las ou conscientizá-las de alguma forma”. O absoluto desconhecimento da realidade social da época e da região e a não determinação precisa das classes sociais, dos seus interesses e aspirações, impediu que os dirigentes pudessem formular uma estratégia e táticas digna de um movimento de tal magnitude. Disso resultou o fato de que durante o período que a Coluna percorreu o país, a relação com a população tenha sido quase sempre, superficial, episódica, folclórica e trágica. O ataque à cidade de Piancó, na Paraíba, pode ser classificado como sendo um acontecimento trágico, acontecimento este que poderia ter sido relevado a um acontecimento banal e rotineiro. Mas, o alheamento dos dirigentes da Coluna com relação à sociedade sertaneja, sua cultura e seus valores éticos, enfim, o desconhecimento total da história da região, acabou por determinar o ataque brutal e insensato.
O líder de Piancó era o Padre Aristides, nascido no ano de 1872, na fazenda Alegre, hoje município de Pombal. Sacerdote, político e professor em todas estas atividades. Exercendo o sacerdócio, adquiriu um grande respeitabilidade entre os habitantes da região. O seu trucidamento às mãos dos revoltosos provocou uma grande indignação entre os sertanejos. Sobre esse assunto, escreve Souza Barros o seguinte: “esse incidente talvez tivesse ditado a atitude dos sertanejos na sua resistência à Coluna. O padre católico recebia e ainda recebe no interior uma consagração e respeito integrais. Uma população fanatizada a ponto de criar o mito de Padre Cícero não admite que seus líderes carismáticos sejam atingidos”. Cordeiro de Farias, que foi o chefe do destacamento da Coluna que atacou Piancó pagou um alto preço no decorrer de sua vida pública, por ter cometido um erro político de tal dimensão. Este ataque a uma obscura cidade do sertão deslustrou sua carreira de militar e prejudicou suas aspirações políticas.
Quando candidatou-se ao Governo de Pernambuco, para suceder Etelvino Lins, circulou um folheto entre a população do Estado responsabilizando-o pela morte do Padre Aristides. O folheto dizia o seguinte:
“Alerta pernambucanos
Da praça e do cafundó
Que Cordeiro de Farias
Foi quem matou sem ter dó
O Padre Aristides da Cruz
Da cidade de Piancó
No açude sangrou o Padre
Com seu ferro tirano
Fez ele beber o sangue
Com seu gênio desumano
Como quem não tinha vindo
Do ventre do ser humano
Depois que ele fez o Padre
Beber sangue em golfadas
Cortou os membros do Padre
E com ações desgraçadas
Botou na boca do Padre
As partes emasculadas”.
Os efeitos negativos da desastrada operação militar comandada por Cordeiro de Farias logo se fariam sentir, aumentando o fosso que existia entre o mundo subjetivo dos dirigentes da Coluna e o mundo objetivo formado pela história sertaneja. Um dos cronistas da Coluna, João Alberto Lins de Barros, não pôde deixar de registrar o fato de que “desde o Ceará vínhamos notando resistência obstinada à nossa marcha por parte da população. Notícias mentirosas, infâmias baixas, eram espalhadas contra todos nós. Diziam os agentes do governo que tudo destruíamos, tudo conspurcávamos e que raptávamos as mulheres porventura encontradas no caminho para deixá-las prostituídas mais adiante”. E mais: “A população civil, hospitaleira e simpática nos Estados que tínhamos percorrido até o Piauí, apresenta-se agora feroz contra nossa gente. Fruto dessa campanha infamante foi a resistência que culminou com a morte do Padre Aristides. Víamos com tristeza aquele povo pobre, que devia ser beneficiado com a vitória dos ideais revolucionários, atirar-se bravamente contra os homens da Coluna, em combate desigual”. Apesar da evidência palpável do erro político cometido ao ataque de Piancó, manifestado no imediato retraimento da população sertaneja com relação à Coluna, o General Cordeiro de Farias tentou justificar a sua atitude, afirmando o seguinte: “O Padre Aristides, cujas ordens religiosas estavam suspensas, era um chefe político que, embora tivesse seus aliados, tinha também inimigos em toda aquela região da Paraíba. Então, começamos a receber manifestações de regozijo por termos acabado com ele”. Também contrária a todas as evidências é a opinião de Anita Leocádia, quando afirma que “a partir do episódio de Piancó, o prestígio da Coluna Prestes viria a crescer no Nordeste”.
Fonte: Sertão Sangrento: Luta e Resistência
Por: Jovenildo Pinheiro de Souza